A música é uma arte milenar. Muitos estudiosos acreditam que ela tenha surgido na mesma época em que o ser humano desenvolveu suas primeiras formas de comunicação. Independente da época, a música sempre foi um objeto de expressão cultural e artística dos povos, sendo um elemento fundamental na construção histórica da sociedade.
Mas afinal, o que é Música? Essa pergunta pode ser fácil para alguns, mas definitivamente é muito mais complexa do que imaginamos, abrangendo um imenso terreno de interpretações, onde todas podem ser válidas.
Apesar disso, podemos nos referir à Grécia Antiga para iniciarmos a discussão deste artigo. Na mitologia clássica, os gregos davam um sentido ainda mais profundo à música em relação aos dias de hoje. Uma das vertentes do pensamento dizia que a arte musical estava diretamente associada com o divino, ou seja, era a harmonia do nosso interior com o sagrado, onde nós (humanos) conseguíamos chegar através da música. Nessa época, a Música era entendida como um processo de autoconhecimento, sendo intimamente relacionada com nossos sentimentos, sensações e reflexões pessoais.
Nesse contexto, a música foi evoluindo conforme o avanço da sociedade, tanto conceitualmente como tecnologicamente. Desde seus primeiros instrumentos orgânicos, feitos à mão, até os equipamentos eletrônicos altamente desenvolvidos de gravação e produção musical, ela está em constante metamorfose.
Chegamos em 2023. Uma nova tecnologia vem efervescendo os mais diversos mercados e tem mudado a forma como criamos, interagimos e consumimos as artes. A Inteligência Artificial chegou em nossas vidas de paraquedas e já não é mais uma promessa, é uma realidade de impacto inimaginável que cresce de forma gigantesca.
A música, assim como outras áreas artísticas, tem sido altamente contagiada pelas “IA’s”. Mas até que ponto uma expressão sonora manipulada por um “robô” pode ser considerada música?
Divergência de opiniões
O uso da inteligência artificial no mundo da música tem originado duas reflexões distintas: uma mercadológica e outra ética.
Pelo ponto de vista do mercado, uma série de inovações vêm surgindo a cada dia, aprimorando e contribuindo com a carreira de muitos artistas. Por outro lado, algumas vezes ela tem se intrometido em questões éticas polêmicas, como uso ilegal e plágios que ferem os direitos autorais e a propriedade intelectual dos músicos.
Vamos abrir aqui o grande leque de possibilidades que as IA's tem agregado à indústria musical, mas também expor suas controvérsias.
Auxílio no processo criativo
Todo produtor musical já passou alguma vez por um bloqueio criativo, mas a Inteligência Artificial chegou como um companheiro para essas horas de perrengue.
Um grande número de IA’s vem aparecendo para ajudar na criação de letras, melodias e ritmos. Muitos programas têm oferecido plugins com pacotes de sons, loops e outros elementos totalmente criados por Inteligência Artificial que são 100% gratuitos e livres de direitos autorais. Essas ferramentas tem um potencial enorme de adquirir conhecimento, se adaptando à sonoridade dos músicos e sugerindo ideias específicas para o usuário.
O Splice é um ótimo exemplo disso. Uma das maiores bibliotecas de samples musicais do mundo lançou recentemente seu novo recurso com Inteligência Artificial, o ‘Stack’. A ferramenta economiza horas do processo criativo, gerando loops e ideias exclusivas e personalizadas que inspirem o produtor musical a iniciar uma nova track.
Ferramentas anti-violação de direitos autorais
Se existem IA’s causando problemas jurídicos para inúmeros artistas, por que não criar uma que previna essa dor de cabeça?
A 'ThatTrack', por exemplo, é uma nova ferramenta de pesquisa criada com tecnologia de Inteligência Artificial que utiliza 30.000 músicas livres de copyright em seu catálogo para indicar a mais ideal para o usuário.
Esse novo programa se aprofunda mais do que simplesmente pesquisar por gênero ou estilo musical específico. É possível também usar como base temas, vídeos da internet ou playlists para encontrar várias músicas que se assemelhem ao conteúdo da obra, e elas podem ser usadas em qualquer lugar – publicações, vídeos, podcasts e até filmes.
Além da ThatTrack, a plataforma de streaming Deezer também fez um “bom uso” dessa tecnologia no cenário musical. A empresa lançou um sistema de Inteligência Artificial que detecta e exclui qualquer música na plataforma gerada por IA que imite outros artistas ou faixas populares.
Estratégias de Marketing
Os algoritmos de Inteligência Artificial podem identificar novas tendências e possíveis sucessos, ajudando músicos e gravadoras na tomada de decisões em suas estratégias de marketing e distribuição musical - principalmente através de playlists.
Criação de playlists personalizadas
Que os algoritmos dos serviços de streaming utilizam Inteligência Artificial para montar nosso perfil e sugerir músicas específicas, não temos dúvidas.
Porém, plataformas como a ‘PlaylistAI’ vem inserindo a IA para trazer uma personalização ainda maior. Através de imagens, vídeos ou textos, o usuário “guia” qual será a vibe ou o estilo da playlist que quer montar e o programa prepara uma lista exclusiva de músicas para o pedido. Quer fazer um esquenta para o festival? É só jogar o flyer do evento no app. Escutar um som enquanto anda de carro ao pôr do sol? A IA resolve.
Produção de videoclipes
As IA’s já vem sendo utilizadas para produzir conteúdos audiovisuais de vários artistas da indústria musical.
Peter Hollens, um cantor e Youtuber com mais de 3 milhões de inscritos, lançou um videoclipe feito 100% com Inteligência Artificial para seu single "I Can't Make You Love Me". Utilizando seis ferramentas diferentes de IA, Peter criou um vídeo coeso e visualmente interessante sem mesmo sair de casa.
Outro exemplo, vindo mais para a cena eletrônica, é do renomado duo Tropkillaz. No início de 2021, época em que as IA’s começavam a engatinhar, Zegon e Laudz resolveram incorporar as deepfakes no videoclipe da track "Oooh (I Like It)", tornando-se os primeiros brasileiros a lançar um trabalho deste tipo na cena musical.
"Sem esse trabalho (do software) seria impossível concluir o clipe em prazo aceitável"
Explicou um dos programadores responsáveis pela produção do vídeoPoderia ter citado aqui também a criação de capas para álbuns e singles por meio de Inteligência Artificial, mas creio que é um comodismo em excesso que pode comprometer o ofício importantíssimo de inúmeros artistas visuais - designers, ilustradores e animadores.
Democratização da música
Como retratamos recentemente num artigo, a música está cada vez mais democrática. Hoje em dia para se produzir algo é só ter (no mínimo) um computador e um fone. Com a evolução dos softwares e hardwares musicais e a chegada das IA’s no mundo da música, menores serão os custos para adentrar nele e menos requisitos serão necessários para os artistas se desenvolverem.
E já tem muita gente aproveitando o ritmo para fazer parte desse cenário: cerca de 60% dos artistas já estão usando Inteligência Artificial para fazer música, seja na mixagem, masterização ou na produção. O dado é da empresa de distribuição musical Ditto Music, que entrevistou mais de 1.000 usuários da plataforma e chegou a esse resultado significativo.
Aprovação de artistas
Imagina só você poder usar o vocal de uma cantora renomada em sua própria música sem se preocupar com uma denúncia ou processo? Isso é exatamente o que a famosa cantora Grimes, que já fez colaborações com Anyma e Janelle Monáe, permitiu que fosse feito.
Por ser uma artista independente, sem contrato legal com nenhuma gravadora, além dela autorizar o uso de sua voz livremente, prometeu dividir 50% dos royalties (pagamento dado pelos serviços de streaming aos artistas) a qualquer um que fizesse músicas geradas por IA imitando seus vocais. Ela só abriu uma exceção: não utilizar para letras pejorativas. Mesmo se arriscando, Grimes foi uma das primeiras artistas de renome a explorar os potenciais da IA dentro da música. Confira o primeiro lançamento oficial copiando a voz dela:
Além de Grimes, vários outros músicos demonstraram otimismo em relação à presença dessa nova tecnologia no mercado. Neil Tennant, do icônico Pet Shop Boys, afirmou que a IA pode ser útil na composição musical, servindo como um ponto de partida do processo criativo.
Timbaland, um dos compositores mais requisitados do mundo, tendo feito trabalhos com Madonna, Beyoncé, Jay-Z e 50 Cent, admitiu que pretende abraçar a nova tecnologia e legitimar seu uso em produções futuras.
"Será realmente uma nova maneira de criar e uma nova forma de gerar dinheiro com menos custos”
Comentou TimbalandAté mesmo o controverso Deadmau5, nerd da tecnologia e bastante conservador em muitos aspectos, fez uma análise positiva da entrada das IA’s no setor musical. Para o artista, elas abririam um nicho de mercado para a verdadeira musicalidade, se os músicos acrescentarem algo único ao sabor das composições utilizando as ferramentas.
Investimento de big techs
As gigantes da tecnologia também estão incentivando essa nova onda de inovações.
A Meta, que gerencia o Facebook e Instagram, está investindo num modelo de Inteligência Artificial capaz de criar e completar imagens ainda mais próximas da realidade. O sistema que está sendo desenvolvido promete utilizar conhecimentos prévios sobre o mundo para reproduzir cenários com muito mais precisão, o que resolveria o problema que as IA 's têm de gerar mãos. Caso essa tecnologia vá para frente, veremos uma nova era de conteúdos audiovisuais cada vez mais semelhante aos “humanos”, ou seja, será bem difícil diferenciar o que é ou não realidade. Tem que ser muito otimista para acreditar que isso não vai abalar radicalmente a Internet num futuro próximo.
Já o Google lançou recentemente sua ferramenta chamada 'MusicLM', que permite criar músicas apenas com um comando de voz ou texto (seja ele de um gênero, humor, ritmo, local ou época – “progressive house dos anos 90”, por exemplo). Treinadas com mais de 280.000 horas de repertório musical, essa Inteligência Artificial surgiu, segundo a empresa, para “capacitar o processo criativo” dos artistas. Com ela, você pode até mesmo cantar uma melodia ou tocá-la num instrumento que a IA irá criar algo seguindo esse caminho.
Mas há um porém. Ela “proíbe” que o usuário crie qualquer coisa que faça referência a um artista que já existe. Será que isso é mesmo efetivo? A arte também não se baseia em inspirações à outras pessoas? Eis aí a primeira controvérsia.
Crescimento de músicas artificiais
Quem iria imaginar a 10 anos atrás que as pessoas estariam criando obras inteiras em questão de segundos. Com o passar do tempo, os algoritmos das IA’s têm evoluído suas capacidades a ponto de gerar músicas com apenas alguns cliques.
O software Boomy, por exemplo, que foi reintegrado ao Spotify após ser banido por denúncias, tem permitido que os usuários criem várias faixas digitando um estilo ou gênero musical que pretende “produzir”. O resultado disso é um tanto quanto assustador: milhares e milhares de músicas artificiais sendo lançadas nas plataformas de streaming – muitas delas pegando referência de outros artistas.
Uma pesquisa que confirma isso é o recente relatório da empresa de dados Luminate. Segundo divulgado, mais de 120 mil músicas são lançadas nas plataformas de streaming todos os dias em 2023, um aumento expressivo de 28% em relação ao ano passado. Para além do maior acesso dos músicos a esses serviços, esse crescimento significativo também está relacionado com a integração da Inteligência Artificial na criação de músicas, já que vem possibilitando um maior número de produções em um menor período de tempo.
Reviver artistas: tributo ou desrespeito?
Parece incrível trazer as vozes de artistas que já se foram de volta à vida, né? Esse é um cenário bem recorrente quando falamos de Inteligência Artificial no mundo da música hoje em dia.
Mas existem algumas implicações éticas profundas para estas simples “homenagens”.
Muitas vezes, como no caso do eterno DJ e produtor Avicii, quem fica responsável por administrar os bens e o catálogo musical de um artista falecido é a família - surge aí o problema. Para além do viés jurídico, da violação de direitos autorais e de propriedade intelectual, existe também o desrespeito pelo luto. Falando justamente de Avicii, o que temos visto é um grande vazamento de tracks que estavam prestes a serem finalizadas antes de sua partida, como “No Pleasing A Woman” (umas das únicas tracks cantadas pelo próprio DJ) e “Lethal Drug” (colaboração com Chris Martin, do Coldplay). Agora imagina jogar essas obras numa ferramenta de IA para recriar uma música completa utilizando os acordes, melodias e até mesmo os vocais do sueco e lançar na Internet? É esse nível de profundidade que precisamos enxergar.
Evidentemente que fui bem específico, mas é necessário que haja uma certa consciência do que é um tributo, e o que escapa de ser isso - uma questão muito complexa que tem divergido opiniões.
O medo de ser substituído
Um dos maiores receios da humanidade atual é ter sua mão de obra substituída por um robô. Na produção musical não é diferente.
Segundo pesquisa realizada pelo Bedroom Producers Blog, 86% dos produtores musicais acreditam que a Inteligência Artificial irá substituir as ferramentas manuais existentes no processo de produção. E mais: 73% creem que a IA irá tomar sua função futuramente.
Fato é que as máquinas podem auxiliar na criatividade dos produtores musicais, mas a sensibilidade humana durante a criação artística não deve jamais ser substituída, e eu te digo o porquê.
Música gerada por Inteligência Artificial tem qualidade?
Para o nosso alívio, as músicas produzidas totalmente por IA não tem a mesma essência de uma feita à mãos humanas. Não tem inovação, não existe um elemento ‘surpresa’ – tudo é fruto de alguma referência já existente na Internet.
E não é por mera opinião pessoal; as próprias pesquisas indicam isso.
Um estudo da Universidade de York, na Inglaterra, reuniu 50 especialistas musicais, que escutaram trechos de áudios produzidos de formas distintas (alguns por máquina e outros por seres humanos), avaliando cada uma individualmente. E o resultado foi previsível: as obras feitas por IA foram consideradas “inferiores” em comparação com as de músicos humanos.
A indústria reage
Diante da incerteza que o setor do entretenimento vem vivendo por causa dos impactos da Inteligência Artificial, a indústria artística se reuniu para criar a ‘Human Artistry Campaign’, uma campanha idealizada por mais de 40 grupos diferentes – músicos, artistas, escritores e vários outros.
O movimento propõe conscientizar e estabelecer sete princípios básicos para que as IA’s sejam utilizadas no setor, dentre eles, a transparência e a garantia de que os copyrights e os royalties sejam justos somente com a criatividade intelectual humana.
Em paralelo a isso, o USCO - Escritório de Direitos Autorais dos Estados Unidos, também se atentou ao assunto e alterou suas orientações acerca do uso de Inteligência Artificial em músicas. Lá nos States, os direitos autorais só podem proteger os materiais frutos da criatividade humana - tudo que tiver um dedo de IA será analisado caso a caso. Isso implica dizer que ocorre uma ponderação subjetiva (feita por uma pessoa) se a máquina foi utilizada como um auxílio ou conduziu todo o processo de criação da música - neste último caso, será considerada como obra de não-autoria humana e não terá direitos autorais.
Além disso, preocupadas com a reputação de seus artistas e a perda de receitas, as três maiores gravadoras do mundo, Universal Music Group (UMG), Warner Music Group (WMG) e a Sony Music, se uniram para negociar com as plataformas de streaming uma forma de remoção de conteúdos gerados por IA que se pareçam com outros artistas. Além de ter mais controle sobre os direitos autorais, as empresas teriam um domínio maior dos direitos de publicidade (referente ao uso comercial do nome, imagem e voz de artistas). Até o momento deste artigo, o sistema proposto ainda está sendo discutido, mas já é uma prova de que o setor musical está tratando o assunto com a seriedade que é necessária.
A UMG também não gostou nada de saber que as empresas de IA estavam usando suas músicas protegidas por direitos autorais para “treinar” seus algoritmos sem o consentimento dos proprietários. Em resposta, ela pediu que serviços como Spotify e Amazon Music impedissem o acesso dessas empresas de tecnologia ao catálogo musical da gravadora.
O que será daqui pra frente?
Não temos para onde fugir. A Inteligência Artificial é uma tecnologia com capacidades ilimitadas de evolução, sendo impossível prever até aonde ela irá chegar e qual será o tamanho de seu impacto para as gerações futuras. Com isso, não é exagero dizer que estamos num momento crucial na música, provavelmente vivenciando o início de uma nova era.
Apesar de tudo, resgato aqui o ponto inicial dessa discussão: o que é Música? Assim como nos tempos da Grécia Antiga, a música segue sendo uma expressão da emoção e dos sentimentos pessoais, nos surpreendendo e moldando a nossa experiência sensitiva. Dificilmente uma IA terá o poder de transmitir essa conexão genuína que só a criatividade humana é capaz de criar através da arte.
Outro fator é que, considerando que as Inteligências Artificiais se baseiam em bancos de dados e referências pré-existentes para desenvolver seus algoritmos, banalizar o seu uso na música pode tornar o cenário artístico menos criativo e original, levando a uma homogeneização do setor musical, onde todas as faixas se pareceriam umas às outras.
O primeiro passo para desacelerar esse avanço desenfreado das IA’s é estruturar uma regulamentação para elas. Para isso, questões éticas e legais cruciais citadas anteriormente precisam estar envolvidas: a proteção de direitos autorais e o respeito à propriedade intelectual dos artistas.
Feito isso, o caminho se abre para que a gente busque encontrar um equilíbrio delicado entre aproveitar os variados benefícios da tecnologia, e preservar a essência da imaginação humana.
Embora a Inteligência Artificial venha oferecendo uma série de assistências para diversos ramos do mercado, é extremamente importante que os artistas, compositores e gravadoras fiquem atentos para protegerem seus trabalhos.
Com a abordagem correta, a tendência é que as IA’s revolucionem a indústria da música, se tornando não uma concorrente para os artistas, mas uma extensão deles, uma ferramenta para aprimorar e contribuir na criatividade que só nós humanos possuímos.
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